A fome bateu. Quem não tem fome? As mesas da pamonharia estavam
convidativas. A dieta sedativa não venceu o argumento da fome, mesmo
que não fosse daquelas de morte. Falando em fome, um garoto negro
sentado à minha frente não dissuadiu o olhar reto enquanto eu pedia
“uma pamonha à moda, por favor”.
As pessoas passavam. Eu lia um livro, como sempre. Como um sistema de
defesa por ter lido na realidade a fome estampada em seu olhar,
impostei os olhos ligeiros nas páginas agora mudas ao meu cérebro
em pane de valores. A pamonha chegou, mas a fome passou. Lembrei de
quando puseram no meu prato a carne de uma galinha que eu havia
alimentado no quintal de casa: o paladar nem precisou trabalhar. A
boca não quis comer, o estômago quis embrulhar. Ocorreu o mesmo
agora.
A solução é simples, pensei. “Moço, vai uma pamonha ai?”,
poderia ter perguntado. Antes, provei um primeiro pedaço da pamonha
com queijo e linguiça. A intenção era comer até a segunda
pamonha, desta vez seria de doce, como se fosse sobremesa. Mas, mesmo
com a pimenta, desgostei o sem-sabor do alimento.
Menos pela vontade de saciá-lo da fome que pela ânsia de me
despreocupar, me culpei. “Pergunte”, pensava. Quase fui. Quase.
Minha preocupação mental pode ter sido tanta que o funcionário da
pamonharia passou limpando as mesas laterais e perguntou ao menino:
“Com fome, Luiz?” - “Nada, moço, comi agorinha um negócio
ali”, declarava o garoto. Temi ofendê-lo caso oferecesse e eles
prosseguiram em conversação rápida, enquanto eu comia a pamonha
bem rápido que era para engolir tudo antes de não mais conseguir.
Tinha deixado a liguinha (ou elástico) que amarrava a pamonha cair
no chão. “Ele disse que não está com fome e não me olha mais,
deve ter sido impressão minha”, me autossugeri. Levantou abrupto e
veio para perto da mesa em que eu estava, agachou e pegou a liguinha.
Sentou no mesmo lugar de antes e ficou brincando com o elástico. “Se
ele não estivesse me olhando, provavelmente não teria visto a
liguinha cair”, refutei culposo a tese anterior.
A pamonha já acabou, mas permaneci sentado esperando uma ação
digna de cristão. Parece sofrido e foi, mas nem tanto. E não
escrevo para me mostrar convalido, frágil ou arrependido, mas
sincero. “Se ele pedir, eu dou a pamonha”, era meu bater no
martelo. “Mas e se ele estiver com vergonha? E se fosse eu? Sem
coragem até de oferecer, eu teria coragem de pedir?”, surtei de
novo.
Ele levantou, pegou algo no chão, deu de costas e foi embora.
Fotografei na mente a caixa de engraxate que o menino de bermuda
vermelha e camiseta verde carregava meio torto acostumado e até
então eu nem tinha notado o objeto de trabalho que ele portava.
Nesse meio tempo, não dei de olhos com ele de frente nenhuma vez a
não ser na chegada. Só com a visão periférica acompanhava seus
passos tentando ter certeza de sua condição. “Estava mesma com
fome ou era noia minha?” Mesmo um tanto fechado, dei meus
indiretas. Contei o dinheiro suficiente para pagar mais que uma
pamonha à vista e fiz cara de bom moço olhando para o nada. Mas ele
não pediu. “Precisava?” Não saberei. A pamonha de doce... não
comeria, claro. Ele também não comeu. “Estaria só descansando?”
Tomara... tomara que não estivesse com fome. Consciencialmente, não
me retiraria o fardo.
A fome que bateu, aquela que narrei no começo, foi a desse
engraxate. Se bateu nele, não sei. Mas bateu em mim. Bateu que nem
surra numa guerra mental entre valores professados, discursos
aclamados e falta de ação.
Escrever é registrar. Um registro não precisa causar
constrangimento, nem sofrimento, nem piedade... nem por mim, nem pelo
menino. Um registro escrito constitui reflexão agendada para
garantir, no próximo passo, um calçado mais acertado que me
permita, ao menos, solicitar os serviços do engraxate para que ele
possa comprar, se quiser, a tal pamonha que ninguém comeu, nem eu,
nem ele.
“Como é bobo e desnecessário relatar isso”, na certa até eu
penso como o leitor agora. Sei que ninguém precisa se culpar. A
culpa não ajuda em nada. Eu não me culpo. Mas me responsabilizo
construtivamente. Pelo garoto? Não. Por minhas atitudes no dia a
dia. A situação pode não ser real, ou seja, o Luiz talvez nem
quisesse a pamonha. Mas, em sentimento, a ocasião me foi conflituosa
e porque não proveitosa. O conflito gera mudança. Este texto tem a
intenção de carregar o tom do desconforto que é assumir qualquer
imperfeição na tentativa de sair da zona de conforto. Sei que
também é desconfortante lê-la ou ouvi-la.
E, porque gera reflexão sincera e mudanças na perspectiva de que
sempre é possível começar a amar mais ou, nas palavras de Paulo
Freire, ser mais, ao ponto de agir depois da reflexão dialógica, é
que digo a esse desconforto que me pediu para ser escrito: assim
seja.
Caro amigo
ResponderExcluirDesejo que o Ano Novo
se transforme em tua vida
em Dia Novo,
para que em todo anoitecer
existam fogos de artifício
para colorir os céus do teu olhar
das mais singelas alegrias,
e a cada amanhecer
existam sonhos simples
para dar novos sentidos
a tua vida.
Aluísio Cavalcante Jr.